Cova do Vapor: Uma praia na crista da onda
Foi entre uma entremeada e uma sardinha, sentada num banco desequilibrado numa mesa improvisada em Alfama, durante os Santos Populares lisboetas, que tive a certeza de que algo se passava na Cova do Vapor, do lado de lá do Tejo. No meio da confusão de arraiais, sentou-se ao meu lado um casal de turistas franceses acabados de chegar dessa antiga vila piscatória entre o rio e o mar. “Como a descobriram?”, quis saber. A história é simples: Depois de terem visto o documentário Lisbonne, au pays bleu, no canal France 3, decidiram que durante as férias na capital teriam de guardar um dia para conhecer a tal Cova do Vapor, bastante retratada na emissão.
Com o mesmo espírito de descoberta, pusemos os pés na areia para perceber como esta zona de veraneio se está a transformar na praia alternativa aos confusos areais da vizinha São João, na Costa da Caparica. Não será por acaso que este casario desgovernado já foi cenário de novelas, de filmes ou documentários nacionais e estrangeiros, como este que tem trazido franceses até cá (encontrámos outro casal in loco, que apresentou a mesma argumentação).
A Cova do Vapor é bela
Um cantinho junto ao mar
Todos passam por ela
Não passam sem cá voltar
Os versos saem-lhe escorreitos e são da sua autoria. Além das deliciosas bolas de berlim (ao domingo chega a vender mil unidades) e dos pastéis de nata sem ovo, Eduardo Ferreira, 53 anos, é exímio a contar histórias da terra onde nasceu e sempre viveu, grande parte do tempo atrás do balcão da Panicova. Não admira: o seu pai era “o Manuel da fruta”, que ajudou a transportar as casas da antiga Lisboa Praia para aqui, quando o mar começou a galgar a terra, nos anos 1930. Durante 30 anos foi preciso puxá-las, com juntas de bois, muito lentamente, até onde a água não chegasse. E não chegava aqui, a esta parcela de cultivo, pertencente a uma fábrica de explosivos que funcionava nas redondezas. Nessa época o “doutor Roger “, um francês (voilá!), doou os terrenos e as casas foram todas licenciadas.
Depois do 25 de Abril, a arquitetura empírica ganhou asas e acrescentaram-se pisos ou anexos às casas já existentes, à medida das necessidades de cada família. Essas construções são ilegais (não têm licença de habitabilidade), só que os seus habitantes pagam IMI, água e luz à Câmara de Almada.
Mas quem manda aqui é a associação de moradores conseguiu que a eletricidade chegasse em 1986, a troca de 11 contos por habitação. Antes já tratara de a água correr nas torneiras (até há drenagem fluvial) e da pavimentação de algumas ruas.
Por acaso até cai bem
A Cova tem bebida típica e a sua história também passa pelo Eduardo da padaria. Foi o seu cunhado, em tempos emigrado na Venezuela, quem trouxe o cai-bem, um “refresco” com ginjinha, gasosa e hortelã.
Desta receita original derivou-se para a que se encontra atualmente à venda por um euro o copo (em vez da hortelã, usa-se sumo de limão). Aviso importante: o seu sabor varia mesmo muito da padaria, por exemplo, para O Transmontano, aberto há 60 anos. O único restaurante da terra terá menos quatro décadas do que a casa onde Ana Jordão, reformada, passa férias com a neta Maria. Desde a sua fundação, as estacas da vivenda Tudo ou Nada foram enterradas em três sítios diferentes, sempre a fugir das águas. “Agora já não sai mais daqui”, assegura a avó de 63 anos, que ainda se lembra quando à volta da casa típica de madeira não havia mais do que dunas e tem encarado mal o desenvolvimento desenfreado da “aldeia”, com muito cimento à mistura.
A amiga Maria José Gonçalves, 60 anos, que também passa férias na Cova do Vapor desde o tempo em que não havia água ou luz, num prefabricado que está para ir abaixo há mais de 40 anos (uma ameaça que paira sobre todo este terreno), gosta de realçar a “maravilhosa praia”, onde nunca falta areia, e o “ambiente giro e descontraído”. Depois de almoçarem juntas na casa de Ana, separam-se até voltarem a encontrar-se no areal, apesar do vento não dar mostras de querer amainar.
Da 5.ª avenida à dos milionários
Já não irão encontrar Sara e João, o par de jovens namorados que estão aqui pela primeira vez para fugir à confusão da vizinhança, onde sempre passaram fins de semana e férias. “Iremos voltar”, garantem. Leonardo, Duarte e João, os três com 15 anos, amigos de férias, já sabem que voltam todos os verões para casa dos avós. Apanhamo-los a sair da praia um deles com a prancha de bodyboard às costas, mas sem qualquer tipo de pressa. “Costumamos jogar à bola, estar com as raparigas e dar umas voltas à noite com os nossos amigos, tudo a pé ou de bicicleta.” São eles que explicam que a “primeira praia”, aquela onde ainda se toma banho no rio, é mais para os “nativos”, enquanto que a segunda, separada da outra por um longo pontão no enfiamento do farol do Bugio, está pensada para os mais jovens, sendo concessionada pelo bar Albatroz, um poiso com vista privilegiada para o pôr do sol e a Linha de Cascais.
Muito perto da praia, também há o bar da associação de moradores, com snooker, matraquilhos e muitas cadeiras para quem lá quiser ficar (organizam-se algumas noites temáticas). Durante o dia o movimento não é muito.
Neste aglomerado de casas, onde se podem ver conchas a ornamentar portões, dragões a encimar terraços, conjunções de azulejos de gosto duvidoso e grafittis a anunciar trabalhos de construção, os nomes das ruas puxam ao sorriso. Pode ir-se da 5.ª avenida à avenida dos milionários…
A descontração com que se caminha por estas ruelas quase em labirinto algumas delas cheias de areia trazida da praia, outras em terra batida de chinelo no pé, calções e até de tronco nu, faz lembrar alguns recantos menos turísticos do Brasil
Não fazer nada
Por apenas 40 euros por noite, os ingleses Marta, 28 anos, arquiteta, e Tom, 39 anos, músico, estão deliciados a não fazer nada.
Pela primeira vez em Portugal, procuraram na internet um sítio fora da rota turística para passarem uns dias, depois de conhecerem Lisboa. No Airbnb toparam com o novíssimo hostel Bugio à Vista e pareceu-lhes perfeito (“ainda cheira a madeira”). Têm aproveitado para nadar na praia, “esplanar” no café em frente ao hostel (onde provaram o cai-bem), e passear até São João, que resumem numa frase: “Tem demasiado cimento e a cidade está muito em cima da praia.” A dona do hostel não está durante o Verão.
Mas sabemos que se chama Amália e que é filha de um recatado artista francês que mora na Cova do Vapor há anos. E que foi ela quem, em 2012, fez a ponte entre o coletivo de arquitetos EXYZT e as duas centenas de pessoas que aqui vivem, para a construção da Casa do Vapor. Este projeto de arquitetura informal quis aproveitar as madeiras gastas em Guimarães na altura da capital da cultura, daí que a casa efémera, uma incubadora que acolhia toda a casta de ideias para a zona (cozinha comunitária, oficina de bicicletas, rampa de skate, biblioteca), fosse totalmente desse material.
Hoje, no terreno arenoso mesmo em cima da praia, só resta a biblioteca do Vapor (que tenta abrir todas as tardes) e alguns vestígios do projeto que mexeu com os moradores da Cova e a pôs definitivamente no mapa-mundo. Três anos antes, já os arquitetos Filipe Balestra e Sara Goransson haviam feito uma miniatura desta aldeia piscatória da Trafaria, para apresentar na TISA (Escola Informal de Arquitetura). “Isto não é um bairro de lata, mas um tesouro valioso que vale a pena defender com unhas e dentes”, afirmaram na altura.
Ganda onda
Em junho, a Cova voltou a andar nas bocas do mundo. A culpa foi de Hugo Pinheiro, 35 anos, bodyboarder profissional e natural da Costa da Caparica, que lançou o documentário Mar da Calha para mostrar uma onda especial que aqui existe, na confluência do rio com a água salgada. E até convidou os consagrados surfistas Vasco Ribeiro e Tiago Pires para a experimentarem. “Venho para aqui desde os meus 16 anos e descobri que os movimentos de areia do rio dão azo a ondas diferentes, a partir lá fora.” Longe vão os tempos em que fazia um sinal aos amigos da Costa para irem ao “secret” e logo todos sabiam que iam surfar entre o rio e o mar.
“Dantes, andávamos dez dentro de água, hoje podemos chegar aos 70, muitos deles de outros países.” Decidiu, por isso, ter uma casa na Cova do Vapor a dois passos da praia (que tem alugado a estrangeiros por 350 euros a semana), um barco com que vai à pesca, e as motas de água para apanhar as tais ondas, estacionados no pequeno porto de abrigo que funciona como porta de entrada antes do casario.
A maré começa a encher e com ela chega mais vento, que apazigua o calor. É tempo de largar a areia e fazermo-nos ao asfalto, de regresso ao mundo real mas partimos com vontade de regressar a todo o vapor.
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